A música da abertura do Jornal Nacional ecoa de norte a sul do Brasil. João Antunes, paulista, 33 anos, vive seu primeiro dia como desempregado. Ele é agora um ex-entregador de pizza. Sentado na poltrona surrada da sala do seu surrado apartamento, ele recebe como um soco na cara a primeira frase do William Bonner, logo na abertura do telejornal:
— Brasil chega a marca de dez milhões de desempregados.
João, até este momento, não havia dado conta do número de desempregados Brasil afora.
As palavras em forma de números ricocheteiam nas paredes da sala, entram como um tiro em sua cabeça e ecoam no seu subconsciente: dez milhões de desempregados! Dez milhões! dez... DEZ... milhões... MILHÕES... ões... ÕES... ões... ÕES... Entorpecido, João passa a ver os números flutuando ao seu redor pela sala: 10... 000... 000...
Na sua frente, forma-se uma longínqua fila imaginária de homens, mulheres, jovens, velhos, magras, gordos, baixinhas, grandalhões, negros, brancos, pardos, índios, mamelucos, mestiços, cadeirantes, bombados, barbados, gerentes de loja, operadores de empilhadeira, motoristas de caminhão, pilotos de corrida, malabaristas de semáforo, pedreiros, padeiros, eletricistas, atores de teatro, técnicos de informática, animadores de festa infantil, lixadores, esteticistas, balconistas e... um entregador de pizza segurando uma caixa de pizza, meia mozzarella, meia calabresa. É ele: João. O décimo milionésimo desempregado do Brasil.
Por um milionésimo de segundo, João não se sente mais um zero à esquerda. Pela primeira vez em sua vida ele tem oito dígitos.
Hipnotizado, João levanta-se e vai até o guarda-roupa, pega sua camisa da seleção brasileira comprada na 25 de Março para a Copa de 2014 (aquela do 7 a 1). No alto das costas, seu nome JOÃO em letras maiúsculas e logo abaixo o número 10.
Com uma caneta marcadora de CD ele acrescenta seis zeros, três abaixo do número 10 e mais três logo abaixo:
10
000
000
Na Avenida Paulista, na altura da FIESP, taxistas intimidam um motorista de Uber. Com as mãos na cintura, uma silhueta grita:
— PAREM!
— Quem é esse maluco?
— Eu sou o Décimo Milionésimo Desempregado do Brasil!
— Quer levar porrada?
— Vocês estão em cinco. Mas eu... eu sou mais que cinco, sou mais que dez! Sou dez milhões!
Os taxistas partem pra cima dele.
Em um ponto de SP, João para sua moto e tira o capacete. Coração acelerado, o suor escorre. Ele escuta uma voz raivosa:
— Passa a bolsa! A bolsa! Quero a bolsa!
João desce da moto e vê uma mulher acuada por um assaltante com uma faca.
— Me dá o celular também. Vamos! A aliança, me dá!
A mulher resiste. A cena é tensa e mexe com os nervos de João.
É alta madrugada. João decide que é hora de voltar pra casa. Começa uma garoa fina na zona leste de São Paulo. No trajeto, ele ouve o som de uma explosão.
Ao longe, João vê um grupo de assaltantes em frente ao que restou de uma agência bancária. Ele usa o laserpoint. Deu certo da primeira vez, mas o ponto vermelho não intimida os assaltantes.
Os tiros de uma “.50” e as rajadas de uma AK47 quebram tudo, até o silêncio da noite. João resolve bater em retirada. “Até o Batman recuaria”.